por Lya Luft
* Texto sugerido pela Profª. Msc. Lúcia Helena Agostinho.
Como é normal, haverá os que vão odiar a coluna e os que vão apreciar. Fora os indiferentes, para quem tanto faz: alienar-se ao menos por um tempo pode ser bom. Não ligar a TV de manhã, não abrir o jornal, não deixar que nada nos envenene a alma desde cedo. Por outro lado, há que saber: a alienação pode ser perigosa.
Pois quero falar da nossa intimidade, que vai ficando rara e complicada num momento em que nossa cultura apela para uma dramática inversão do público e do privado. Queremos ( ou achamos que é preciso) saber tudo, revelar tudo, abrir a roupa, tirar a roupa, escancarar a casa, o quarto, filmar a cama, relatar o dia a dia minuto a minuto, para um ou milhares de desconhecidos ou amigos virtuais. E sobretudo flagrar o outro: a toda hora somos “flagrados” ou “flagramos” alguém, ainda que simplesmente andando na calçada com o filho pequeno. O que importa numa pessoa, a dita celebridade ou (que alívio) um anônimo cidadão comum, não é ser uma pessoa decente, interessante, produtiva, engajada em coisas boas, conciliadora na hora certa e indignada idem, mas que esteja com tudo à mostra. Se não tiver uma pontinha de escândalo, não interessa. Discrição não está com nada, recato é coisa fora de moda, os tímidos precisam ser fortes e resistentes na sua timidez abençoada. Estamos ávidos de exposição, nossa e alheia. Por exemplo, vai parecendo obrigatório gritar aos quatro ventos se somos gays ou não. Receio que em algum tempo ou não gays serão objetos do mesmo horrendo preconceito que hoje persegue os próprios. A orientação sexual de cada um, seja ela qual for, deveria ser encarada com naturalidade (esse é o objetivo de todos os justos movimentos e manifestações pelo mundo), como a cor da pele, o formato dos olhos, o peso, o jeito. Um dia será assim, talvez. Mas derrubar um preconceito é longo e duro trabalho. Quanto mais gritamos contra ele, mais ele aparece e se fortalece. É preciso passar um tempo, acalmar-se a onda, equilibrarem-se as coisas e as emoções , para que a gente possa encarar o outro com mais respeito, e que isso seja o habitual. Sem que se tenha de expor intimidades, fazer barulho, causar impacto, agarrar-se em público como na cama, onde vale o amor, não o escândalo. (Isso se refere a todos, em tudo: alguma elegância, algum comedimento, tornam a vida mais palatável.)
"Discrição não está com nada,
recato é coisa fora de moda.
Estamos ávidos de exposição,
nossa e alheia"
E isso não só em questões sexuais. Tem-se falado sobre amamentar em público, coisa que sempre se fez quando necessário. Com discrição. Amamentar é natural, é belo, é saudável, mas, se tiver de ser em público, sempre há como proteger mãe e bebê, nesse ritual de intimidade: um lenço, um virar-se para outro lado. Não é preciso vociferar, expor-se raivosamente. Talvez a palavra seja: agressivamente. Amos, sexo, afeto maternal, alegria, felicidade, ate dor, tornam-se naturais se tratados como algo natural, não escrachado para chocar eventuais espectadores ( os que ainda se chocam com alguma coisa).
Não me lixo para a opinião dos leitores. Ao contrário. Mas não me importa, às vezes, parecer antiquada. Amantes, manifestantes, quaisquer pessoas numa condição que busca ser respeitada, ou na luta mais louvável contra qualquer maligno preconceito, podem protestar sem uma feroz agressividade que traz mais hostilidade, quando o que a gente quer é o direito de ser quem se é, como se nasceu, como se gosta ou como se pode ser. Com dignidade, com altivez, com compostura. Em qualquer aspecto da humana lida e luta, tão múltipla e variada.
Talvez este seja ainda o momento do grito, do peito de fora, da carícia ardente em público, do possível escândalo. Com o tempo, imagino e espero, a gente vai mudar, as coisas vão se estabelecer, alguns preconceitos vão cair ( outros surgirão, com certeza, porque nós somos assim). É possível que sempre haja gritaria e humilhação de um lado, crueldade e mesquinharia do outro, seja em que aspecto for. Que nesse caminho se preserve, em tudo o que envolva intimidade, isso que todos desejamos tanto: respeito, a começar por nós próprios e a nossa circunstância.
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*Escritora gaúcha e tradutora brasileira. É também uma professora universitária aposentada e colunista da revista semanal Veja.
Fonte: Revista VEJA impressa, ed.2224 – 06 de julho de 2011, pg.24
Pois quero falar da nossa intimidade, que vai ficando rara e complicada num momento em que nossa cultura apela para uma dramática inversão do público e do privado. Queremos ( ou achamos que é preciso) saber tudo, revelar tudo, abrir a roupa, tirar a roupa, escancarar a casa, o quarto, filmar a cama, relatar o dia a dia minuto a minuto, para um ou milhares de desconhecidos ou amigos virtuais. E sobretudo flagrar o outro: a toda hora somos “flagrados” ou “flagramos” alguém, ainda que simplesmente andando na calçada com o filho pequeno. O que importa numa pessoa, a dita celebridade ou (que alívio) um anônimo cidadão comum, não é ser uma pessoa decente, interessante, produtiva, engajada em coisas boas, conciliadora na hora certa e indignada idem, mas que esteja com tudo à mostra. Se não tiver uma pontinha de escândalo, não interessa. Discrição não está com nada, recato é coisa fora de moda, os tímidos precisam ser fortes e resistentes na sua timidez abençoada. Estamos ávidos de exposição, nossa e alheia. Por exemplo, vai parecendo obrigatório gritar aos quatro ventos se somos gays ou não. Receio que em algum tempo ou não gays serão objetos do mesmo horrendo preconceito que hoje persegue os próprios. A orientação sexual de cada um, seja ela qual for, deveria ser encarada com naturalidade (esse é o objetivo de todos os justos movimentos e manifestações pelo mundo), como a cor da pele, o formato dos olhos, o peso, o jeito. Um dia será assim, talvez. Mas derrubar um preconceito é longo e duro trabalho. Quanto mais gritamos contra ele, mais ele aparece e se fortalece. É preciso passar um tempo, acalmar-se a onda, equilibrarem-se as coisas e as emoções , para que a gente possa encarar o outro com mais respeito, e que isso seja o habitual. Sem que se tenha de expor intimidades, fazer barulho, causar impacto, agarrar-se em público como na cama, onde vale o amor, não o escândalo. (Isso se refere a todos, em tudo: alguma elegância, algum comedimento, tornam a vida mais palatável.)
"Discrição não está com nada,
recato é coisa fora de moda.
Estamos ávidos de exposição,
nossa e alheia"
E isso não só em questões sexuais. Tem-se falado sobre amamentar em público, coisa que sempre se fez quando necessário. Com discrição. Amamentar é natural, é belo, é saudável, mas, se tiver de ser em público, sempre há como proteger mãe e bebê, nesse ritual de intimidade: um lenço, um virar-se para outro lado. Não é preciso vociferar, expor-se raivosamente. Talvez a palavra seja: agressivamente. Amos, sexo, afeto maternal, alegria, felicidade, ate dor, tornam-se naturais se tratados como algo natural, não escrachado para chocar eventuais espectadores ( os que ainda se chocam com alguma coisa).
Não me lixo para a opinião dos leitores. Ao contrário. Mas não me importa, às vezes, parecer antiquada. Amantes, manifestantes, quaisquer pessoas numa condição que busca ser respeitada, ou na luta mais louvável contra qualquer maligno preconceito, podem protestar sem uma feroz agressividade que traz mais hostilidade, quando o que a gente quer é o direito de ser quem se é, como se nasceu, como se gosta ou como se pode ser. Com dignidade, com altivez, com compostura. Em qualquer aspecto da humana lida e luta, tão múltipla e variada.
Talvez este seja ainda o momento do grito, do peito de fora, da carícia ardente em público, do possível escândalo. Com o tempo, imagino e espero, a gente vai mudar, as coisas vão se estabelecer, alguns preconceitos vão cair ( outros surgirão, com certeza, porque nós somos assim). É possível que sempre haja gritaria e humilhação de um lado, crueldade e mesquinharia do outro, seja em que aspecto for. Que nesse caminho se preserve, em tudo o que envolva intimidade, isso que todos desejamos tanto: respeito, a começar por nós próprios e a nossa circunstância.
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*Escritora gaúcha e tradutora brasileira. É também uma professora universitária aposentada e colunista da revista semanal Veja.
Fonte: Revista VEJA impressa, ed.2224 – 06 de julho de 2011, pg.24